AVISO
Este texto-filme contém líricas e cruas cenas
de violência física e psicológica!
E naquele momento em que eu estava morrendo não passou um filme na minha
cabeça. Nem um curta, nem um longa, nem uma série, ou musical, comédia, drama,
aventura. Nem Fim foi escrito nos letreiros frente aos meus olhos. Nada vi.
Simplesmente morri no filme tão lindo que nem existiu. Era um romance...
Tudo começou quando eu descia a Paracatu e você
vinha com seu jeito desligado no sentido Jabaquara. E eu sempre distraído desta
vez me atentei para o seu andar bailarino e sensual. Você foi se aproximando e
eu tive certeza de que te conhecia, mas nunca houvera te visto. Até que
passamos um pelo outro. Eu te admirei a beleza e fui completamente ignorado.
Quando você já estava a quatro passos além,
estanquei os meus. Era estranho, mas eu sabia que tínhamos história. Não
conseguia lembrar direito. Na minha cabeça éramos muito mais do que conhecidos.
Tínhamos intimidade. Na realidade vivíamos aquela cumplicidade que só o tempo
de convivência permite construir e solidificar na vida juntos.
Ao me despertar novamente você já se afastara
quase meio quarteirão e eu ali estático, sem reação, desprovido de palavras ou
idéias para que você me reconhecesse e percebesse o quanto éramos importantes
um para o outro. A minha figura incomum e descabelada não poderia ser esquecida
assim tão facilmente como se fora um transeunte qualquer, um mero indigente.
Você prosseguiu impávida, com passos impiedosos
alcançando o próximo quarteirão enquanto eu, imóvel, me certifiquei que você
era o amor da minha vida. Sim. A nossa paixão arrebatadora fora invejada e
cantada pela cidade, versada em rimas ricas pelos poetas mais instigantes. Eu
só não entendia o tamanho da sua frieza, como se nada houvera existido entre
nós.
Os pensamentos embaralhados em minha mente, o
coração despedaçado pelo desprezo que eu recebia após tantas juras de amor que
devíamos ter feito um para o outro ao longo dos anos me transtornaram, mas nem
assim consegui me mexer. E você já chegava à grande avenida, bem próxima da
última esquina. Pensei em gritar o seu nome, mas eu não o sabia.
Antes que virasse a esquina eu tive esperança
de que você parasse, me visse ali na calçada feito cão abandonado, olhasse nos
meus olhos dando aquele sorriso que era exclusivo meu e flutuasse de braços
abertos pra mim, momento em que soaria nas rádios uma sonata de Chopin
emocionando o mundo, mas não. Você sumiu entre as pessoas que atravessavam a
rua.
Aí o sangue subiu e me deu uma raiva! Quem era
você pra me tratar daquele jeito? O que eu tinha feito para merecer aquilo?
Havia me dedicado tanto, tínhamos sonhado um futuro tão bonito longe dessa
loucura urbana que desvirtua os melhores sentimentos. E nossos filhos, nossa
casa? O cérebro a mil, mas os meus pés se movimentaram em slow motion.
Quando cheguei esbaforido e cheio de ódio na
Jabaquara você andava aceleradamente rumo ao metrô São Judas. Ah... mas eu te
alcançaria. Você não fugiria assim impune e me considerando um lixo, a escória
humana, um traste, um verme, um nada. Não sei como foi surgir uma peixeira em
minha mão exatamente na hora em que comecei a correr desenfreadamente.
As pessoas me viram correndo de olhos
esbugalhados com aquela faca na mão e assustadas gritaram pela polícia. Ninguém
imaginava o quanto a gente tinha se amado, a intensidade da paixão que
vivêramos. Não podiam entender que eu tinha plena razão pela minha revolta
incontrolável. Eu não te conhecia, mas acreditava que tudo aquilo era a mais
pura verdade.
Vendo-me ao lado, a expressão de pavor em seu
rosto foi comovente. Que horror cinzento em seus olhos tão verdes. Tive a
impressão que finalmente você me reconhecia e se arrependia tardiamente de me
ter feito esse mal. O impressionante é que eu ainda não recordava de você. A
faca já sentia o sabor do seu sangue quando seis balas de 38 estraçalharam o
meu corpo.
E naquele momento em que eu estava morrendo não
passou um filme na minha cabeça. Nem um curta, nem um longa, nem uma série, ou
musical, comédia, drama, aventura. Nem Fim foi escrito nos letreiros frente aos
meus olhos. Nada vi. Simplesmente morri no filme tão lindo que nem existiu. Era
um romance...
Fábio Roberto
Inspirado em “Sui Generis” de Leandro
Henrique