Eu sempre fui considerado e sempre me senti diferente de
seres humanos. Nem melhor, nem pior, apenas diferente, mesmo porque, de
modéstia e humildade incomparáveis, mesmo nascido leonino, não tenho
insegurança em me saber longe da mediocridade mundana. Portanto, com essa
decisiva ausência de dúvida, pior que outros jamais eu seria.
Os humanos, na maior parcela de sua vasta população, são
sujos, nojentos, desprovidos de sensibilidade e inteligência. Raramente são
caridosos e restringem a prática da solidariedade ao acontecimento de tragédias,
apenas porque pensam que pode acontecer com eles amanhã. Interesseiros, amorais
e antiéticos, são os maiores destruidores do planeta, consumindo avidamente a
natureza, os animais e seus semelhantes, predadores de si mesmos sem nem
perceberem, devorando-se dos pés ao pescoço até a inanição absoluta.
Obviamente toda exceção tem uma regra e no caso dos humanos
é algo a ser conferido, pois os que se destacam das premissas apontadas
provavelmente habitam este espaço forçadamente, não são daqui, exatamente como
eu.
Realizei esta digressão para situar a imunidade apontada no
título do capítulo: o estranho fato de Faroberto nunca ter sido acometido de
uma mísera gripe. Pergunto-me há anos como é ficar constipado, com dores por
todo o corpo, cabeça pesada rodando e com desvarios pela febre alta. Espirros
intermitentes, frio intenso, olhos vermelhos lacrimejantes. O pulmão saindo
pela boca por causa da agressividade da tosse. Todos os mais de 298 sintomas ou
resultados dos famigerados vírus já descobertos, eu nunca tive a oportunidade
de sentir, provocando o menosprezo, a inveja, o preconceito das pessoas,
inclusive dos amigos próximos.
E olha que eu tentei de todas as formas ser contaminado.
Andei durante invernos no horário de pico em ônibus e metrôs lotados de gente doente.
Perambulei nos prontos socorros de hospitais públicos de baixo nível, repletos
de enfermos. Visitei amigos combalidos e prestei assistência a desconhecidos
empalamados. Fiquei o mais próximo possível das amigas achacadas por meros
resfriados ou por vírus influenza A, o pior e mais fatal. Colei no corpo e na
alma das minhas Musas da Vida quando debilitadas por fortes gripes, fazendo
amor delicadamente por dias, trocando fluídos e energias intensamente. Em vão. Nada
aconteceu. Nem um simples espirro eu consegui obter, restando-me apenas a
frustração e a sensação de ser um pária, proscrito até dos exilados de Capella.
A inusitada imunidade foi notada quando eu era um roliço
bebê, um dia em que a minha mãe, por compromissos inadiáveis, deixou-me na
creche da Antarctica, empresa onde o meu pai trabalhava. A quantidade de
crianças era enorme e todas, de forma praticamente epidêmica, estavam gripadas.
A minha chegada causou espanto. Primeiro pela recusa taxativa em beber leite. A
mera proximidade de uma mamadeira com esse líquido asqueroso causava jatos
certeiros de vômito, que se espalhavam no ambiente atingindo as enfermeiras.
Segundo pela contagiante alegria e impressionante saúde. Imediatamente os médicos
infectologistas do Hospital Santa Helena foram chamados pelo pediatra da
creche, preocupado que eu estivesse com uma nova modalidade de vírus incubado,
que talvez se manifestasse violentamente depois. Exames de todo o tipo foram
realizados sem nada constatar, então fui liberado no fim da tarde, com a
recomendação de observação cuidadosa e diária pela prestimosa Lourdes, mãe
exemplar e enfermeira de carreira.
Quem consultar os arquivos dos jornais da época constatará a
grave e preocupante pandemia que se alastrou pela cidade de São Paulo,
atingindo principalmente crianças, idosos e pessoas insalubres. Assustando a
todos eu permaneci alheio a qualquer problema, fama que se difundiu despertando
o interesse do Dr. Luiz RotzenbergerAlfitstofen, Mestre Livre Docente da USP e
Chefe da Área de Moléstias Contagiosas do Hospital das Clínicas, que se
intrigou com o meu “caso” de nunca ter tido uma gripe ou resfriado, em meio à
verdadeira praga que devastava a cidade e começava a se espalhar pelo país. Não
conseguindo explicações após criteriosas análises, o luminar esculápio recorreu
ao colega e conceituado especialista Dr. Jorge Alberto Pereira Barreto, Diretor
do Hospital Emílio Ribas, de Isolamento, Referência no Tratamento de Doenças e
Moléstias Contagiosas na América Latina. A junta médica não alcançou
diagnóstico, tornando a solução da minha imunidade um desafio à ciência. E
muito mais do que isso, se obtivessem êxito conseguiriam criar um medicamento
para a erradicação definitiva da gripe no mundo, o que resultaria num valioso
prêmio Nobel de Medicina ao Brasil. Como era um desafio científico, resolveram
então convocar o trabalho de um dos principais cientistas do planeta.
Foi aí que conheci o Doutor Fernando Buarque Cristóvão
Bastos, emérito e laureado pesquisador do Instituto Biológico, que contava 41
anos de idade. Gentil, de gestos suaves e fala quase sussurrada, Dr. Fernando
executou questionamentos meticulosos aos meus pais e avaliou por meses todo o
extenso trabalho dos colegas anteriores para, só então, traçar o planejamento
do seu estudo. A partir daí solicitou uma batelada de exames e começou a sua
pesquisa. No ano seguinte ele levou amostras do meu sangue ao Instituto
Nacional de Saúde, nos Estados Unidos, para inclusão no Programa de Doenças Não
Diagnosticadas (UDP), apesar de não tratar-se de doença e sim busca de uma cura.
Utilizando tecnologia de ponta para a realização de cuidadosos exames,
juntou-se ao Geneticista William Gahl, Diretor das Pesquisas do Metabolismo,
Formações Genéticas e Doenças Sem Diagnóstico daquele Instituto. O fato que os
deixou completamente desarticulados foi que, além das propriedades afeitas ao
sangue de qualquer ser humano, detectaram uma porcentagem quase imperceptível
de álcool oriundo de cerveja, o que só foi possível descobrir em equipamentos
altamente sofisticados. Atônitos, vieram ao Brasil, deixaram-me em dieta
controlada por seis meses, tiraram muitas amostras de sangue e voltaram aos
Estados Unidos, onde até os dias de hoje procuram incansavelmente uma resposta que
explique o meu sangue e a imunidade, para chegarem à conseqüente cura da gripe.
Eles sabem que isso está no meu sangue misto de plasma, hemácias, leucócitos,
plaquetas e cerveja. Dr. Fernando, aos 98 anos e em cadeira de rodas, e o Dr.
Willian, completamente encurvado e com problemas de visão por tanto utilizar
microscópios, afirmam com lucidez que jamais desistirão.
Não é fácil ser assim diferente e incompreendido, mas somos
o que somos. Nasci assim, tentei de
todas as maneiras pegar uma gripe e não consegui. Espero que quando eu não
estiver mais aqui, os seguidores dos pesquisadores iniciais prossigam essa
nobre missão dos abnegados cientistas que mencionei, para que as futuras
gerações tenham a gripe erradicada de suas vidas. Gerações mais saudáveis e
onde eu não me sentiria tão isolado como no vasto e estranho mundo de agora.
Fábio Roberto
(da Fabiografia – uma biografia não autorizada pelo próprio
autor –
Parte 4- Capítulo 73)