quarta-feira, 29 de setembro de 2021

QUASE

 ... e foi assim que acordei naquele dia decidido a nunca mais amar, eu deletaria os poemas inspirados pelas musas que me invadiram pra depois desaparecerem subitamente, restando-me um coração devastado e apagaria as canções que eternizavam essas paixões poderosas e instigantes de outrora, que seriam levadas pelo vento a lugar nenhum, como um eco que fora se desfazendo no ar até sumir, tempestade que se tornaria brisa deixando silêncio, sombra, uma solidão de náufrago sem nem mar, céu ou sentimento e assim acordei e tinha decidido fazer isso, nunca mais amar, prostrando-me no frio congelante e miserável que a minha alma percebia, e eu flutuava no vácuo desta mente desprovida de memória, saudade, alegria ou dor, e exatamente nessa hora, quando eu já era absoluta ausência, inverso de qualquer futuro, sem localização, história, espaço, referência ou medo, apenas os olhos insistiam em permanecer levemente abertos, lutando ainda contra o cansaço ao qual eu me entregara há mais tempo do que a minha idade e eu pedia para que os meus olhos se fechassem e me deixassem morrer a esperança, afinal eu decidira nunca mais amar, sofrendo para alcançar essa firmeza ao ponto sem volta, sem possibilidade de revisão, pois não era mais ensaio, era estar nas luzes do palco, era o momento em que a derradeira declamação atinge o clímax da poesia e o último canto soa retumbante aquela nota que define a beleza da música, portanto o segundo em que é impossível retroceder, pois impusera-se o definitivo, mas uma fresta de olhar ficou brilhando, brilhando, mesmo sem paisagem pra admirar ou lágrima pra derramar, na verdade permaneceu quase sorrindo, talvez, indiferente a qual motivo fosse e não seria ironia eu acordar e decidir nunca mais amar e você, justo nesse instante, se deitar ao meu lado?

Fábio Roberto