sábado, 19 de fevereiro de 2011

SÉRIE CRÔNICAS

FATO VERÍDICO

Sempre achei que o jeito durão do Carlão é apenas uma defesa, uma casca pronta a ser descascada assim que uma oportunidade real de desvendar-se surja à frente dele. Maduro, homem que cresceu na vida as próprias custas, esse invólucro permite que ele mantenha suas emoções controladas, pelo menos até a quinta garrafa de cerveja, quando se libera levemente brindando os amigos com seu humor impagável – ele nem cobra por isso -, contagiante e único. Eu conheço um pouco da história do Carlão. Ninguém pode imaginar a determinação do nosso amigo em superar todas as dificuldades da infância vivida na roça, nem as vicissitudes dos empregos humildes da adolescência, para chegar ao momento da aventura corajosa da juventude em São Paulo, cidade que desbravou sozinho perambulando pelos quarteirões que se sucediam aos seus pés. Nem sonhava em transformar-se no declamador emérito de hoje. Nessa época foram muitas as experiências do Carlão: viu cenas de sangue num bar da Avenida São João, pois tava lá um corpo estendido no chão. Entrou em bolas divididas, amou fazendo de conta que era o primeiro, costurou retalhos de cetim e escreveu cartas a Mários ausentes. Esses acontecimentos moldariam dentro dele, juntamente com a prática da meditação transcendental, o Mestre que posteriormente afloraria. Rapaz no auge da forma física resistiu à tentação de tornar-se garoto de programas ou posar nu para a G-Magazine. Seria dinheiro fácil, mas Carlão e seu caráter impoluto tinham outros objetivos. Ator e locutor talentoso, primeiro queria chegar aos monitores de TV de todos os lares brasileiros, meta que alcançou rapidamente com os vários comerciais que protagonizou. Depois de provar não ser apenas mais um rostinho bonito, resta agora o segundo passo: a conquista de Hollywood e do mundo! Voltando ao cerne da estória, o jovem impetuoso seguiu o seu trajeto incólume. Excluindo um trabalho de faculdade em que posou de cueca para um outdoor, nunca Carlão utilizou os elogiados (pelo público feminino/gay) atributos do seu corpo para obter quaisquer vantagens e só voltaria a exibir-se publicamente de cueca num fatídico churrasco na casa do Jairo, após agressivas provocações das meninas presentes. E era cueca de bombeiro, segundo Rosana, mas deixemos esse caso momentaneamente de lado...
Com o tempo tornamo-nos amigos, companheiros inseparáveis de cervas e papos. Certa noite, entre vários assuntos debatidos, o Mestre e eu conversamos sobre cães e de como eles se tornam importantes integrantes das famílias, com todas as regalias dos seres humanos. Carlão, entretanto, afiançou nessa data que para ele existiam limites, pois nunca chamaria sua cadelinha Princesa de filhinha, por exemplo. Nunca diria “vem com o papai”. Discordei, propus uma aposta, mas infelizmente Carlão perdeu o papel...

A ampulheta da eternidade foi virada diversas vezes. Recém empossados do novo lar, Carlão e Isabela receberam a visita da Princesa para o final de semana. Princesa foi com sua mala de roupinhas, cremes, xampus, rações, fitinhas, guloseimas e brinquedinhos, sem esconder a imensa alegria, o que demonstrou lambendo freneticamente a face séria do nosso amigo. Puro disfarce. Fosse cachorro Carlão estaria também abanando instintivamente o rabicó, mas sendo humano e tendo que demonstrar que é durão, não podia dar o rabo, quer dizer, o braço a torcer. Manteve-se impassível, mandando a cadelinha comportar-se, mesmo porque com o apartamento ainda em reformas a mudança nem fora totalmente completada. Muita arrumação para fazer. Portanto, Princesa, não faça bagunça, disse firmemente o Mestre com o dedo em riste. Agradecida pela preocupação do Carlão, a quem fitou com olhinhos meigos, a canina deitou-se obediente em sua caminha e passou a observar os donos arrumarem-se para sair. Uma das coisas mais agonizantes para um cão é observar os donos preparando-se para sair. Os cães têm a plena convicção de que serão abandonados, entrando em total desespero interior. Alheios a isso, pai e filha dirigiram-se aos respectivos passeios. Carlão teve ainda o cuidado de puxar uma pesadíssima porta ainda não instalada para melhor acomodar Princesa em seu aposento, separando-o assim da sala. Deixando a cadelinha em segurança, nossos amigos caíram na noite.
Voltaram no início da madrugada e tiveram uma surpresa. Ao saírem do elevador escutaram Princesa ganindo como se estivesse sendo torturada. Agilmente, apesar do suave torpor etílico que lhe assomava, Carlão encontrou o molho de chaves no bolso, incrivelmente escolheu a chave certa, virou-a na fechadura, empurrou a porta e... nada. Os ganidos de Princesa aumentaram ao ouvir a movimentação dos seus donos. Carlão, assaz contrariado, empurrou com mais força, mas a porta não deu sinal de abrir-se. A cadelinha começou a uivar e Carlão também. O Mestre respirou fundo, emitiu um mantra tibetano e num esforço hercúleo empurrou novamente a porta, que moveu o suficiente para mostrar que aquela outra porta que ele havia puxado antes de sair para separar os ambientes estava emperrando a entrada. Como aquilo teria acontecido impossível saber. A cadelinha não teria forças para tanto, nem mesmo o vento teria. Mistério. Princesa esvaia-se em lágrimas uivando e ganindo, Carlão também. Isabela acendeu mais um cigarro e exigiu providências. Apareceu o zelador, depois o síndico. Muitos vizinhos congestionaram o hall, o prédio inteiro acordou.  O morador do andar de baixo surgiu com um serrote, Carlão quase lhe serrou o pinto. Aliás, o Mestre já ficou bem popular no condomínio. Chamaram um chaveiro, a polícia, um ladrão arrombador de apartamentos, mas ninguém teve uma idéia para entrar no apartamento novinho sem causar destruições. Até que Carlão, em pânico, teve um lampejo entre um espasmo histérico e outro: - resta chamar meus amigos bombeiros!

Não sei, nem me interessa saber porque só interessa para a Rosana, se a cueca dos bombeiros era igual a do Carlão ou vice versa. O que importa é que enviaram mais de quatro viaturas de bombeiros, a defesa civil e o Samu para esse salvamento no Jaguaré. A essa altura tinha virado salvamento porque Princesa estava quase enfartando e Carlão também... Infelizmente não mandaram um carro com a escada magirus, só para complicar a situação. Mas após horas analisando as possibilidades, quase ao amanhecer os destemidos bombeiros subiram ao topo do prédio, montaram seus equipamentos e desceram de rapel até o apartamento do Carlão, que nesse momento quase mordia a própria orelha enquanto Isabela filava o segundo maço de cigarros dos espectadores. Por sorte a janela da cozinha estava aberta e os bombeiros entraram. Um pegou a assustada cadelinha no colo, enquanto outro desobstruiu a porta. Quando Carlão viu Princesa combalida, em prantos e extenuada abanar o rabinho para ele, abriu os braços, impostou o famoso vozeirão e falou sem titubear: - vem com o papai, Princesa!
Eu sabia. Era só casca de durão.

Fábio Roberto

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